Clemente um punk calejado e em paz ( 2)




Garoto de Subúrbio

“Eu lembro que aconteciam brigas de gangue. Não sei o que era direito. Sei que ‘vira e mexe’ o Clê aparecia estropiado, ralado, com o olho roxo. Quando ele estava com o olho inchado, a gente (Márcia e Cibele) é que cuidava dele. A gente lavava bife temperado para ‘tacar’ no olho dele.” (Márcia Aparecida Nascimento, irmã de Clemente)

Em 1969, aos seis anos de idade, o garoto acostumado a freqüentar o teatro Bandeirantes mudou de casa. Seu pai comprou uma casa para a família no bairro do Limão. Ele vendeu seu carro e usou o dinheiro como entrada na residência na Zona Norte de São Paulo.
Em uma das lembranças mais fortes de sua chegada ao bairro do Limão, Clemente recorda com entusiasmo as comemorações da Copa do Mundo de 1970. “Ah! A Copa foi do ‘caralho’. Pra quem era ‘pivete’ então, era muito foda. Quando saía gol do Brasil todo mundo saía na rua pra se abraçar e comemorar junto. Depois voltavam todos correndo para casa pra continuar a ver o jogo. No final da copa, o céu ficou completamente encoberto com balões coloridos de verde e amarelo.”
Na mesma época Clemente ganhou o primeiro disco, da banda Focus, conjunto de rock progressivo dos Países Baixos - noroeste da Europa -, que ouviu até “gastar a agulha” do toca-disco. Foi uma de suas primeiras influências. Aos 10 anos já era fã de Chuck Berry e da geração do rock´n´roll dos anos 50 dos EUA. Adorava o visual dos artistas que começavam a definir as diretrizes da contracultura. As jaquetas de couro, a ‘zoeira’, o costume de andar em turma, a dança. Mas foi só aos 13 anos, quando estudava na sétima série do então ginásio, que sentiu vontade de tocar um instrumento. Matriculado na Escola Estadual Tarcísio Álvares Lobo – EETAL, na Vila Carolina, não podia imaginar que naquela escola de subúrbio estariam as pessoas que formariam o embrião do movimento punk no Brasil. Logo no primeiro dia de aula, enquanto aguardava a chegada do professor na sala, se deparou com um moleque que mudaria sua maneira de ouvir música. Douglas Viscaíno entrou na sala de aula por volta das sete e vinte da manhã, com um visual cheio de estilo inspirado nos roqueiros da juventude transviada dos anos 50. A empatia foi de imediato:
- Você é roqueiro? - Perguntou Douglas.
- Sim. – Respondeu, sem perder tempo, o jovem Clemente.
- Eu também. Está passando um filme do The Who no cinema. Quer ir?
Surgia ali uma amizade que permanece até hoje. Filho caçula, Douglas representou uma forte influência na iniciação musical de Clemente. A irmã de Douglas, Neli Viscaíno, namorava Valter Urbano (Valtinho), um apaixonado comprador de discos de rock´n´roll. Sempre que ia visitar a namorada, Valtinho levava discos raros, importados e caros. Talvez isso ajudasse a impressionar a irmã de Douglas que também adorava rock. É bom lembrar que na década de 1970, no Brasil, só tinham acesso às novidades musicais do mundo do rock pessoas privilegiadas que viajavam ou pediam para alguém trazer discos do exterior. O caminho de discos importados até as velhas vitrolas brasileiras era longo. Não havia tanta informação disponível. Os discos eram caros, e a informação, escassa. Para ouvir músicas que vinham de fora, a molecada sem grana contava apenas com a boa vontade de algum colecionador. Mas para os amigos Douglas e Clemente, a sorte fez a diferença.
Quando o casal saía para namorar, os garotos ficavam degustando a sonoridade daqueles discos cheios de novidades, guitarras distorcidas e “levadas” modernas. Ficavam ali, inertes, mergulhados em uma viagem musical promovida por bandas como Stooges, MC5, Dust e New York Dolls. Bandas que ninguém conhecia e que na casa do Douglas estavam em primeiro lugar nas paradas.
Juntos, os amigos iam a shows de bandas nacionais. Alguns, no Teatro Aquários, que virou Teatro Zácaro, na rua Rui Barbosa, no Bexiga. As bandas preferidas eram “Made in Brazil” e “Rock da Mortália”. Onde a Rock da Mortalha ia, eles iam atrás. A paixão pela música foi crescendo, até que começaram a “tirar de ouvido” as músicas que gostavam num violão com três cordas de Douglas.
No inicio da segunda metade da década de 1970, Clemente não tinha informação sobre o movimento punk. Ele gostava mesmo era de rock´n´roll. A grande explosão mundial do punk aconteceu em 1976, com Sex Pistols e Ramones. Enquanto esses discos não desembarcavam por aqui, os dois amigos continuavam a tirar suas “musiquetas” de ouvido e a aproveitar as conversas com o cunhado do Douglas que era um excelente conhecedor de música.

Primeiro show, primeira música, primeira banda...
“Na época havia uma idéia no inconsciente coletivo de que tudo que era bom tinha que vir de fora. Quase uma coisa religiosa: você não pode estar diante do seu Deus. O Deus tinha de ser uma coisa mítica. E a gente queria provar que dava pra fazer coisas sem depender dos deuses.” (Douglas Viscaino, amigo e guitarrista da Restos de Nada)

Depois de tantas tardes dedicadas ao estudo do instrumento e às viagens sonoras, a oportunidade para mostrar o que tinham aprendido estava ao seu alcance. A escola onde Clemente estudava, a EETAL, estava promovendo um dia de eventos culturais. Na programação, exibição de filmes, peças de teatro, leitura de poemas e contos, quadras liberadas para a prática de esportes e um pequeno palco disponível para os alunos que quisessem se apresentar. Ôpa! Um palco e os amigos para curtir!
Toda a galera reunida, Clemente no baixo, por sugestão de Douglas, que ficou com a guitarra, pois tocava melhor, e Digue Babaca nos vocais. “Era o apelido dele mesmo, não era ofensa”, esclarece Antonio Carlos Calegari, 45, guitarrista da banda Condutores de Cadáveres. No repertório, o Rock da Salsicha, música que fizeram juntos especialmente para a apresentação e que nunca mais foi tocada. Muita empolgação e clima de amizade. O show? “Engraçado”, diz Clemente, referindo-se a sua primeira vez em um palco para tocar o tão querido rock. “Se é que aquilo pode ser chamado de palco.” Clemente debocha da própria experiência.
Em 1978, quando Clemente e Douglas começaram a ter acesso às primeiras informações sobre punk, não quiseram saber muito sobre o assunto. A forma como a coisa toda lhes foi apresentada - a revista Pop (uma publicação importante dos anos de 1970 que entre outros assuntos abordava comportamento) ensinava a garotada como ser punk; a rede Globo exibiu o clipe do Sex Pistols no Fantástico... – fez com que eles achassem que a nova onda vinda de fora era mais uma “modinha pra playboy”. Dessa forma, o negócio era continuar a ouvir música e a tocar rock. Quando começou a ouvir com mais atenção as músicas punks, Clemente começou a perceber que as influências daquelas bandas - Ramones, Sex Pistols e Generetion X -, eram as mesmas que ele já ouvia na casa do Douglas. E quando um amigo traduziu a letra da música Your Generation, da banda Generetion X, foi que Clemente se interessou pela mensagem e percebeu que a coisa era mais interessante do que achava. A música foi sua primeira influência no gênero punk:
“Eu estou tentando esquecer sua geração [...] Poderia ter um pouco de violência. Mas a violência não é nossa única postura. Poderia fazer de nossos amigos, inimigos. Mas temos que aproveitar a chance. Não é tempo para substitutos. Não temos tempo para ameaças vazias. Ações nada agradáveis. Porque você dá aquilo que recebe. Sua geração não significa nada para mim" (Your Generation).
Entusiasmado com a descoberta da atitude punk, Clemente começou a escrever poesias. Quando os amigos se encontravam na Vila Carolina faziam planos de montar uma banda de rock. Douglas queria uma banda que tivesse em suas letras mensagens fortes e de protesto, como na MPB, que trazia mensagens de protesto contra a ditadura militar. Passaram-se alguns dias, e Clemente apresentou uma poesia ao amigo chamada “No Amanhecer da Noite”. A poesia começa assim: “Nós somos a verdade do mundo. Somos restos de nada...” Douglas interrompeu o amigo para dizer:
- Pô! Por que não formar uma banda chamada Restos de Nada?
A maioria das bandas de rock do momento tinha músicas com o nome da banda. Por exemplo, a banda Ramones tem uma música chamada “R.a.m.o.n.e.s”. A Black Sabbath tem uma música em seu primeiro álbum chamada “Black Sabbath". E assim, por sugestão de Douglas, decidiram mudar o nome da poesia para “Restos de Nada” e formar a banda. Essa foi a primeira música que Clemente fez quando tinha apenas 15 anos de idade. A letra da música é a seguinte:
Nós somos a verdade do mundo. Somos os restos de nada. Vivemos como os ratos de esgoto. Entre o lixo de tudo. À noite nós vagamos por aí. Para ver o que resta de vocês. Cuidado se você estiver só e encontrar com um de nós. Nós não gostamos de nada, nada. Porque não há mais nada do que gostar. Somos apenas lobos solitários. E o nosso uivo é o rock'n'roll. E ao amanhecer, voltamos de onde viemos. Para novamente esperar a noite nascer.
Na Restos de Nada, Clemente tocava contrabaixo. Douglas, guitarra; Ariel Uliana Jr., vocais; e Carlos “Charles” Campos na bateria. Era a primeira banda punk do Brasil. Em sua primeira fase, com Clemente no baixo, tocaram de 1978 até 1981.