Clemente um punk calejado e em paz ( 3)

Galeria do (Punk) Rock
“Chegou uma época, na (Vila) Carolina, em que todo mundo decidiu ter uma banda. O Clemente formou a Restos de Nada, que foi a primeira banda do estilo punk. Eu freqüentava os ensaios que eram num quartinho no fundo da casa dele. Puta, cara! Era muito legal os ensaios... o movimento punk surgindo ali.” (Antônio Carlos Calegari, ex-guitarrista da banda Inocentes)

Em 1977, em São Paulo, havia somente um local onde a molecada podia obter muita informação sobre o que estava acontecendo na cena punk internacional: a Wop Bop Discos. Era uma loja de discos importados no segundo andar da Galeria do Rock, no centro de São Paulo, onde a molecada louca por música, comprava discos do Ramones, após juntar um suado dinheirinho.
Quando a loja saiu da Galeria do Rock e se mudou para a Rua Augusta, Fabio R. Sampaio abriu na galeria a loja Punk Rock Discos. A loja virou referência da molecada que queria saber mais sobre o punk. Depois, vieram as lojas Baratos e Afins e a Devil Discos. Clemente passou muitas tardes ali, “trocando figurinhas” e “matando o tempo”. A Galeria virou uma espécie de “Q.G.” dessa garotada. Na época, ainda não se falava em movimento punk, mas o embrião de tudo estava ali.
“Quando começou esse negócio de punk eu abri a loja e começou a aparecer um monte de moleque. A maioria era office-boy ou desempregado mesmo. O Clemente e o pessoal da (Vila) Carolina estavam sempre lá. Eu me lembro que quando eu via o Clemente eu pensava: ‘Pô! Esse cara não para de cuspir’”, lembra Fábio da inauguração de sua loja na galeria.
Vinham garotos de diversas regiões da cidade. Gente diferente, com idéias novas e vontade de fazer alguma coisa. Inclusive jogar bola em outros bairros. Foi aí que por acaso Clemente conheceu Antônio Carlos Senefonte, 51, mais conhecido como Kid Vinil. Ele foi convidado para ir à Vila Carolina jogar futebol e conhecer as bandas que estavam se formando na região. O resultado do passeio foi o acerto do primeiro show punk do Brasil, em dezembro de 1978. O som rolou no porão de uma padaria no bairro Jardim Colorado, Zona Leste de São Paulo, onde Kid Vinil morava. Tocaram Restos de Nada e AI-5. Naquele dia, Kid passou na Vila Carolina com seu fusquinha vermelho e levou o equipamento de som para o local do evento. Clemente seguiu junto com a rapaziada de ônibus. A viagem levou três horas, e o show abriu uma temporada de apresentações improvisadas que viriam a acontecer pela periferia de São Paulo.

LIBELU, Condutores de Cadáveres...
“Caretão, briguento, bêbado, arruaceiro... Esse aí foi punk. Eu também fui, cara. Mas ele foi mais.” (João Gordo, vocalista da Ratos de Porão e apresentador de TV falando sobre o amigo Clemente)

No final de 1979, o pessoal da Restos de Nada começou a participar de uma organização de esquerda que se chamava Liberdade e Luta – LIBELU. As reuniões aconteciam em um bar na Vila Madalena chamado “Bar da Terra”. Clemente foi algumas vezes: “Participava um pessoal bicho grilo da PUC e da USP, que ficava a noite inteira tomando cerveja e falando da ‘Revolução’. Eu queria mesmo era andar com a minha gangue, encher a cara e dançar rock até morrer. Aquelas discussões eram chatas, e o pessoal da Restos de Nada começou a se distanciar. Foi aí que falei: quando chegar a tal revolução vocês me ligam. E fui tocar na banda Condutores de Cadáveres.”
A formação dos Condutores de Cadáveres reunia Antônio Carlos Calegari na guitarra, Carlos Cris Saldanha (Índio) nos vocais, Nelson Henrique Brussolo (Teco-Teco) na bateria e Hélio Silva (Helinho) no baixo. Helinho, no meio dos ensaios, pegava o violão e ficava tocando música popular brasileira. Os demais integrantes da banda detestavam isso. Na época, não era uma atitude de um punk de verdade. Por isso, queriam trocar o baixista. Calegari conta como foi a entrada do Clemente na banda: “Um dia a gente estava no Postão (onde a turma parava pra tomar cerveja, na Vila Carolina). Houve uma discussão e um começo de briga. O Clemente pegou uma garrafa e a jogou em nós, só que não acertou. A gente achou legal a atitude que ele teve. Foi uma atitude bem “punk”. Aí o Indião falou: “porra, tem que ser ele o baixista”. Aí a gente convidou o Clemente pra tocar com a gente”. Coisa de punk.
A Condutores foi uma das bandas mais importantes do movimento punk que engatinhava em São Paulo. Como banda, conseguiu criar uma cena e produzir festivais. Com Clemente no baixo, em 1980, foi uma das primeiras bandas a começar um “discurso” de movimento punk. Convidavam bandas para tocar em escolas, organizavam festivais e fizeram, nesse mesmo ano, shows durante os três dias de Carnaval em uma casa noturna chamada Gruta. Essa casa localizava-se no bairro de Santa Teresinha, na zona Norte da capital, e foi o carnaval mais roqueiro que até então se tinha visto. Tocaram ali as bandas “Cólera”, “Vermes”, “Presença Rock”, “Restos de Nada” (sem o Clemente) e “Condutores de Cadáveres”, com Clemente. A chamada do evento era: “torne seu carnaval sem efeito curtindo punk rock”. E foi assim.
Os membros da Condutores foram os primeiros punks de São Paulo a usar a bandeira do Brasil estampada nas jaquetas, a fazer broches com o nome da banda e a usar cabelo com corte moicano. Fizeram diversos shows no porão do Teatro Tuca, o salão Beta da PUC, onde, segundo a contagem de Clemente, conseguiram colocar 600 pessoas.

Formando os Inocentes, primeiro show...
“O Clemente foi um dos pioneiros. Acompanhei desde o Restos de Nada o começo dos Inocentes. Acho que "Garotos do Subúrbio" e "Pânico em SP" são os dois primeiros hinos do punk rock brasileiro. Um grande letrista e poeta acima de tudo.” (Kid Vinil, músico e jornalista)

A base de formação dos Inocentes é a mesma da banda Condutores de Cadáveres. Fundaram a banda Marcelino Gonzales (bateria), Calegari (guitarra) e Clemente (baixo). Foi aí que surgiram algumas das canções clássicas do punk nacional: “Pânico em SP” e “Garotos do Subúrbio”, ambas compostas por Clemente.
‘As sirenes tocaram. As rádios avisaram, que era pra correr. As pessoas assustadas e mal informadas. Puseram-se a fugir sem saber do que[...] Chamaram o exército, chamaram os bombeiros, chamaram a polícia militar. Todos armados, até os dentes. Todos prontos para atirar. Punk em SP. Punk em SP. Pânico em SP...’ (Pânico em SP)

‘Vagando pela rua tentam esquecer. Tudo que os oprime e os impedem de viver. Mas será que esquecer seria a solução. Pra dissolver o ódio que eles têm no coração. [...] Garotos do subúrbio, vocês não podem desistir de viver...’ (Garotos do Subúrbio)

“O dia de caos que São Paulo viveu (em 2006) com os ataques do PCC provocou uma guerra na cidade espalhando o pânico por toda a população. A música Pânico em SP já contava exatamente essa história antes de acontecer”, diz Gurgel Praxédis, 46, fã de Clemente. O nome da banda também foi idéia de Clemente. Saiu de um poema do poeta inglês John Cooper Clark. Em festivais punks que aconteciam na Inglaterra nos anos 70, tal poeta fazia intervenções artísticas e declamava seus textos líricos. Foi em uma coletânea inglesa de poemas chamada “Streets” que Clemente passou a conhecer melhor seu trabalho e virou fã. Um desses poemas levava o título “Innocents” e foi o que deu nome a banda de Clemente e de seus parceiros da Condutores.
O primeiro show aconteceu em um local chamado “Curva da Morte”, logo atrás da 24º Departamento de Polícia, no número, 3655, da avenida São Miguel, extremo leste da cidade de São Paulo. Era a primeira edição do festival Grito Suburbano, que corria a periferia divulgando o então recém-nascido movimento punk. Clemente, apesar de ser “super distraído”, segundo sua irmã Márcia, se lembra bem de como foi o primeiro show. Era noite de 16 de outubro de 1981, sexta-feira. A banda saiu do centro da cidade, depois do horário de trabalho, em um ônibus rumo a São Miguel Paulista. Foram horas até chegar ao local, para depois passar o som e acertar os últimos detalhes. Na porta, havia um grupo de punks bebendo e fazendo a zoeira habitual antes dos shows. “Um fusquinha que passava atropelou um punk. Em questão de segundos, uma confusão foi armada. Os punks queriam tirar satisfações. Mas os dois homens que estavam no fusca eram policiais”, lembra Clemente. No evento tocaram Inocentes, Anarcoólatras e Maquiavélicos, antes do local ser invadido por um batalhão de policiais que acabou com a festa. “Bastava estar de jaqueta preta para ser levado para a delegacia”, recorda Fábio R. Sampaio, dono da Punk Rock Discos, que estava lá naquela dia. Na confusão, quem conseguiu escapar teve que andar quilômetros para conseguir um transporte público. Clemente chamou sua namorada, pegou seu instrumento e se mandou dali antes que pudessem prendê-lo. O ano de 1981 ficou marcado por shows da Inocentes invadidos pela polícia e pelas confusões entre gangues.