Clemente um punk calejado e em paz ( 4)


Disco inaugural, carta resposta, punks na mídia...
“O Clemente se tornou essa peça chave por sua inteligência. Ele tem essa capacidade de argumentar com a imprensa. Foi aquele que sabia falar, simpático. Quando começou a falar, mudou o conceito. Ele abriu o caminho para o punk.” (Meire L. M. Rocha, punk que participou ativamente da formação do movimento em São Paulo e atendente de caixa na casa de shows Hangar 110 )

O festival Grito do Subúrbio estava acontecendo havia alguns meses. E até o comêço de 1982 as bandas brasileiras ainda não tinham um disco gravado. Não havia no Brasil nenhum registro sonoro do gênero punk. Fábio R. Sampaio, da Punk Rock Discos, teve a idéia: “Resolvi que ia gravar um compacto da minha banda (a Olho Seco). Eu estava acompanhando os shows que estavam acontecendo no festival Grito do Subúrbio e pensei, em vez de lançar um compacto vou lançar um LP com mais bandas. Convidei os Inocentes e o Cólera. Não sabia se daria lucro, ou não. E realmente foi mais pra divulgar as bandas mesmo. Mas lançamos um disco nacional, com os caras cantando em português. Foi legal!”
Enquanto o primeiro disco punk do Brasil estava “no forno”, aguardando o lançamento, o jornalista do jornal O Estado de S. Paulo, Luis Fernando Emediato, fazia uma série de reportagens para o jornal com o título de “Juventude Abandonada”. A série de reportagens rendeu um ‘Prêmio Esso’ ao jornalista. Um trecho da matéria falava sobre os punks: “[...] pálidos e que andam sempre armados. Com correntes, machados, às vezes até revólveres.
Discípulos de Satã, o ídolo que veneram, eles não vêem muita diferença entre Deus e o Diabo, entre Marx, Kennedy ou Hitler, entre Bem e Mal. Eles gostam de bater, só isso. Alguns, mais cruéis, roubam e espancam velhinhas – e acham muita graça nisso.
Os punkers não freqüentam o Jolly´s e nenhum outro bar parecido, como o Lights, do pessoalzinho “mais burguês”, ou a lanchonete do Dim, em Santana. Os punkers odeiam álcool e drogas, embora gostem de sexo. Eles preferem beber leite com limão – e muitas vezes, depois que bebem essa mistura, provocam vômitos em si mesmos e vomitam o leite coagulado na cara de suas vítimas [...]”
Publicada no Estadão em 1982, as acusações causaram estranhamento na turma que freqüentava a Punk Rock Discos. Fizeram uma reunião, em frente à loja, para discutir o que seria feito a respeito. Decidiram encaminhar uma carta-resposta ao jornal. Os punks precisavam de alguém que pudesse responder à altura e, para tanto, Clemente foi o escolhido. Ele fez a carta e a encaminhou para o jornal. Não esperava ser levado a sério. No entanto, a carta foi publicada e serviu também como prova de que existiam punks no Brasil: “Os meios de comunicação que até hoje divulgaram o movimento Punk Rock no Brasil, em vez de se encontrarem com bandas punks e procurarem saber qual a proposta ideológica do movimento, se preocupam apenas em fantasiar e sensacionalizar pequenos atos de vandalismo que, feitos por uma pequena minoria, acabam por comprometer todo o Movimento Punk no Brasil.[...] os punks não são “gangs” de blusão de couro que vivem a assaltar velhinhas em estações de metrô, e sim um movimento social que realmente não sabe o diferença entre Deus e o Diabo, porque nunca foram à igreja, mas sabem muito bem a diferença entre Marx, Kennedy e Hitler, e que acham que quem tem o costume de beber leite com limão, realmente, tem um gôsto muito requintado, para poder dispensar uma cerveja bem gelada.”
A carta tornou oficial a existência de uma cena punk em São Paulo. Nos dias que se seguiram a sua publicação, começaram a aparecer na Galeria do Rock, no centro da cidade, interessados no assunto. A mídia passou a circular por ali a fim de desvendar o que estava acontecendo. Junto com ela, veio também o diretor de cinema Fernando Meireles, que ainda era estudante de arquitetura. O jornalista e escritor Antônio Bivar, recém chegado de Londres, onde acompanhou os punks de lá, ficou entusiasmado ao descobrir que haviam punks no Brasil. Bivar passou a participar ativamente do movimento abrindo espaço para shows e até escreveu um livro intitulado “O que é punk”. Sarah Yakhni e Alberto Giecco lançaram o documentário “Punks”. A diretora do filme lembra como definiu o tema do documentário: “A gente chegou na Galeria (do Rock) para falar com os punks e ficamos fascinados. Não precisou nem discutir, a gente tinha uma identificação com eles, era um universo que eu achava atraente. E eu via na sociedade algo preconceituoso para com os punks.”
Esse período acabou sendo de muita efervescência para o movimento. E Clemente sempre envolvido de alguma maneira entre os ‘cabeças’ da cena punk, participou de tudo.
“Com os holofotes direcionados aos punks, o gênero começou a ganhar força e mais adeptos”. Nesse período a banda Inocentes deu sua primeira entrevista para a imprensa, na revista Galery Around, onde Bivar trabalhava.
Quando ficou pronto o primeiro disco do gênero punk do Brasil, o Grito Suburbano, as bandas que participaram fizeram um show de lançamento na Av. Cruzeiro do Sul, em frente ao metrô Santana, numa antiga casa noturna chamada Zimbábue. Esse show foi presenciado por jornalistas e documentaristas que queriam desvendar o assunto. “Os punks eram vistos nos meios de comunicação sem ter a mínima idéia do que representava aquilo”, lembra Clemente.

Começo do fim (e o fim) do mundo...
“Só depois de mortos os heróis nacionais entram para a história. Infelizmente é assim. Em vida ninguém quer assumir o fato de que se não fosse o movimento punk, não haveria uma cena de música alternativa no Brasil. Clemente deu o pontapé inicial para o mercado (alternativo) nacional ativo que temos atualmente. De outra forma, estaríamos condenados a essas músicas medíocres que estão por aí.” (Redson Tozzi, líder da banda Cólera)

A partir da segunda metade do ano de 1982, a repercussão que o movimento punk teve na mídia facilitou a rotina de shows das bandas. Foi quando, na Punk Rock Discos Clemente, Antonio Bivar, Fábio R. Sampaio, Calegari e a Meire, punk que trabalhava na galeria, tiveram a idéia de promover um festival para unir todos os punks de São Paulo e do ABC paulista. O que pesava contra a realização de um evento como esse eram as brigas que aconteciam entre as gangues de São Paulo e do ABC. A realização de um evento que reunisse todo o movimento punk era um grande desafio para os organizadores. “As gangues andavam armadas com estiletes, machadinhas, correntes e havia muito ódio entre elas”, relembra Anselmo Guarce, 46, baixista da Inocentes. Foi necessário promover a trégua entre as duas regiões antes de fazer um festival. A Inocentes organizou um show na PUC, onde tocaram Inocentes, Auster e Passeatas, uma banda do ABC. Esse show ficou conhecido como “Show da Paz”. Mas nem tudo ocorreu como o esperado: um incêndio nas dependências da PUC fez com que o espetáculo acabasse mais cedo. O fogo na biblioteca da universidade causou um grande alvoroço. Viaturas do Corpo de Bombeiros, seguidas da polícia, foram enviadas ao local.
Como o “Show da Paz” não tinha dado certo, a outra opção era ir até o ABC conversar com o pessoal. Meire e Calegari tomaram a frente e foram ao território inimigo promover a paz. Pegaram o trem, desceram no ABC e convidaram os punks da região para uma conversa. Falaram sobre o festival e convidaram as bandas do ABC para tocar. O pessoal do ABC não acreditou muito na conversa, acharam que se tratava de uma cilada. “Foi uma loucura aquele dia. Eu achei que os caras (punks do ABC) fossem bater no Calegari. Até a gente conseguir convencer eles que estávamos falando a verdade, foi ‘foda’”, desabafa Meire. Mas no final voltaram ilesos e com a missão cumprida. Poderiam contar com a presença das bandas do ABC para o festival.
O maior festival de punk rock já realizado no país, “O Começo do Fim do Mundo”, aconteceu no SESC Pompéia, nos dias 27 e 28 de novembro de 1982. Das vinte bandas convidadas, 10 eram de São Paulo e 10 do ABC. Um público estimado em 6 mil pessoas compareceu ao evento, três mil em cada dia. As apresentações ficaram registradas em um disco que leva o nome do próprio evento. Para algumas bandas esse LP serviu de único registro sonoro. Para a Inocentes foi o segundo disco do qual participaram, com a música “Pânico em SP” de Clemente.
No final do festival as gangues brigaram e os moradores da região, assustados com a confusão, chamaram a polícia. Os banheiros do Sesc acabaram quebrados, e os principais jornais deram a notícia da confusão no festival. Ao mesmo tempo em que trouxe à tona um movimento cultural que até então se desenvolvia no gueto, o festival fez com que essa mesma efervescência fosse repugnada pela sociedade. Foi o ápice do movimento punk em São Paulo, mas depois dele, o punk voltou para o submundo. As brigas entre gangues fizeram o movimento perder força. Não havia mais lugares para tocar, as pessoas não iam aos shows por causa da ameaça de briga e os donos das casas não queriam ceder espaço para bandas punks com medo de que alguma confusão pudesse quebrar seus estabelecimentos. Shows isolados da Inocentes ainda aconteceram mesmo assim.

Dispersão, censura e receitas médicas...
“O Clemente era um dos caras mais representativos da (Vila) Carolina. Sempre que a gente ouvia falar de ‘treta’ ele estava no meio. Era ele, o Calegari... Mas o Clemente era mais, ele gostava.” (Ariel Uliana Jr., vocalista da Restos de Nada)

Depois do festival ‘O Começo do Fim do Mundo’, a banda Inocentes ainda aglutinava um pessoal fiel ao grupo. Esse poder de arrastar a cena punk chegou a ser comparado por Marco Badin, 44 - que na época era integrante da banda Anarcoólatras e atualmente é o proprietário da casa de shows Hangar 110 -, ao “mesmo efeito que a Sex Pistols causava nos punks em Londres”. Quem conhece um pouco da história do grupo, sabe que com suas atitudes e músicas agitavam a galera. Além de estarem sempre no meio da confusão, eles faziam parte de tudo o que estava acontecendo.
No documentário “Punk´s”, lançado em 1984, Clemente faz um depoimento em que relata a situação do movimento punk pós festival Começo do Fim do Mundo:
“Ou o movimento se reorganiza agora ou... o fim! [...] Está voltando a ser o que era antes. Punks jogados pra lá e pra cá. [...] As bandas não estão dando shows. Um movimento que não tem shows, não tem discos, não tem dinheiro, não é um movimento, não sai. [...] Sair jogado assim, cada um por si, não tem condições.”
Ele se refere a um período em que as brigas entre as gangues voltaram a acontecer com maior freqüência, e o movimento punk se dispersou. Os Carecas do ABC e os punks de São Paulo passaram a se enfrentar. Começaram a se armar e a perseguir uns aos outros. Clemente começava a querer viver de música. E quando foi mandado embora da emprêsa onde ocupava o cargo de encarregado de produção por causa de atrasos devido à rotina de shows que tinha, pegou o dinheiro do fundo de garantia, juntou com o que o pessoal da banda conseguiu arrecadar de última hora e entraram em estúdio para gravar o compacto “Miséria e Fome”, de 1983. Toda produção artística nessa época passava obrigatoriamente por um censor, administrado pela ditadura militar, para liberar o lançamento. Das 13 músicas que faziam parte desse LP, apenas três foram liberadas. Mesmo assim, na música título ‘Miséria e Fome’ estrofes finais foram acrescentadas para que pudesse passar pela censura. A música diz:
É tão difícil viver entre a miséria e a fome. Senti-la na carne e ter que ficar parado... Calado... É tão difícil entender como homens armados expulsam outros homens das terras em que nasceram e se criaram, que são deles por direito para lá plantarem nada...nada... É tão difícil entender como o governo pode permitir que os homens saiam do campo e venham para a cidade criar mais miséria... Criar mais fome... Não estou culpando ninguém. Não estou acusando ninguém. Apenas conto o que vi. Apenas conto o que senti. Miséria e fome.
Assim, o que seria um álbum da Inocentes virou um compacto com três canções. Foram feitas apenas 1.000 cópias para venda, o que faz desse compacto atualmente um disco raro. “Na Europa, é comercializado pelo valor médio de 600 dólares. Eu tinha dois, vendi um”. Clemente se gaba do bom negócio entre risadas.
Em 1983, a banda continuou tentando se manter na ativa. Problemas ideológicos internos começaram a desestabilizar o grupo. Estavam divididos entre dois caminhos: seguir carreira como uma banda de rock paulista, idéia que agradava Clemente, com uma agenda de shows independentemente do tipo de público. Ou em tocar somente para os punks. Essa discussão impediu que fosse lançada a camiseta oficial da banda. Clemente estava fechando o negócio com a Punk Rock Discos para lançar as camisetas quando Ariel, o vocalista e Calegari, o guitarrista, não concordaram por achar que a loja tinha virado um estabelecimento capitalista. “Capitalista é a Shell, o McDonald´s, a Punk Rock Discos é uma lojinha tentando sobreviver”, argumentou Clemente em vão. A Inocentes nunca teve uma camiseta oficial.
Os Inocentes, mesmo desestabilizados por causa das discussões internas, foram tocar em um festival de bandas na cidade de Santos. De tão “chapados” que estavam, não conseguiram tocar nenhuma música. Ficaram durante 40 minutos no palco sem sequer afinar os instrumentos. Os punks se drogavam com remédios de farmácia. Ariel, o vocalista da banda na época, conta que não existia para eles drogas como cocaína, LSD, êxtase, entre outras que atualmente se vê por aí. “O nosso trafico era de receitas médicas. Com a receita a gente podia comprar o que quisesse na farmácia.”
A ‘chapação’ estava afundando a banda que se reuniu para resolver a situação. A solução foi fazer um pacto: ninguém poderia ‘chapar’ antes das apresentações para que pudessem fazer os poucos shows que conseguiam organizar. A Inocentes continuou a fazer seus shows e a respeitar o pacto.