Clemente: Um Punk Calejado e em Paz ( 5)


Punk ‘alpinista’, Biggs...
“O Clemente era um dos cabeças (do movimento punk). Ele tem essa coisa de líder e as características de um agregador. Também era diplomático, risonho. Eu acho que o Clemente pensava que é melhor estar dentro dos meios de comunicação e fazer algo de bom, do que ficar de fora e só dizer que está ruim.” (Sarah Yakni, cineasta)

Em 1983, ainda aconteceu a “Invasão Punk” no Rio de Janeiro. O evento foi realizado no Circo Voador. Sete bandas paulistas, uma do Rio e uma de Brasília, tocaram durante um final de semana. “O Paralamas do Sucesso pediu para abrir o show da Inocentes”, relembra Clemente. O show no Circo Voador rendeu à banda Inocentes uma semana de curtição na cidade maravilhosa. No final de semana posterior ao evento no Circo Voador haveriam shows de outras bandas punks em um local chamado Noites Cariocas, no cume do Morro da Urca. A semana foi repleta de bebedeiras, farras, festas e entrevistas para revistas do Rio.
Foram tantas atividades naquela semana que o tempo passou rápido. Quando chegou o dia do show no Morro da Urca, a grana já não dava mais para pagar a entrada. Sem outras opções, decidiram escalar o Morro. Para chegar lá, as pessoas normais vão de bondinho, mas o único jeito para a turma de Clemente era escalar mesmo. Formavam a turma Clemente, Ariel e Rinaldo “Mingau” Amaral, todos muito loucos de Artani (remédio para epiléticos que ingerido misturado ao álcool tem efeito alucinógeno conhecido na época como bolinha). Começaram o caminho seguindo a trilha no meio do mato. Quanto mais andavam, mais o morro ficava íngreme. Foi uma subida exaustiva. Quando chegaram, a casa ainda estava fechada para o público. Ficaram escondidos no mato, um olhando para o outro e dando muita risada. Um segurança que fazia ronda por ali os encontrou:
- Aê, rapaziada! Podem voltar por onde vieram - Ordenou o segurança.
- Nem ‘fudendo’! - Responderam indignados.
Depois do perrengue que passaram para subir não desceriam de jeito nenhum. Houve então um embate verbal e decidiram fazer uma ‘vaquinha’ para dar um agrado ao segurança. O segurança aceitou o dinheiro e fez a recomendação: “eu não vi nada”. Enfim, entraram no salão e se misturaram com o público que começava a chegar. No bar, os ‘punks alpinistas’ conheceram um sujeito de dois metros de altura que usava calça jeans e coturnos “Doc Martin”. “Parecia um hooligan inglês”, Lembra Ariel. O ‘hooligan’ fez amizade com os punks e assistiram ao show juntos. Segundo Clemente “o show foi bom pra caralho. Foi lá que vi o primeiro mosh (quando uma pessoa salta do palco em cima do público). Em 1983, ninguém tinha feito isso”. Depois do show, o inglês os convidou para ir ao seu bar, em Botafogo. O bar era feito nos moldes dos famosos pub´s ingleses e se chamava “Pocker”. Estava fechado, mas o grandalhão foi logo abrindo a porta e deixando os punks à vontade. A bebedeira começou. “Derrubamos o bar do cara, bebemos tudo. Já era de manhã quando ele falou: ‘vamos pra minha casa agora’”. Bêbado e alucinado sob o efeito do Artani, o anfitrião chamou todos para dentro de seu jipe e foram embora. No caminho, Clemente, Ariel, Mingau e os punks que iam recolhendo pela praia não sabiam da surpresa que os aguardava. Quando chegaram ao prédio suntuoso de frente para o mar foram logo entrando no elevador. Enquanto subiam, pelo edifício de um apartamento por andar, continuavam a fazer a farra habitual. Quando as portas se abriram tiveram a grande surpresa. Ronald Biggs os esperava. O hooligan morava com Ronald Biggs, o conhecido assaltante que em 1963 roubou 2,6 milhões de libras de um ‘trem pagador’ inglês. Biggs morava havia sete anos no Brasil, em 1978, quando os Pistols Paul Cook e Steve Jones vieram ao Brasil, ficaram hospedados na casa de Biggs. Agora, era o grupo dos Inocentes que estavam fazendo uma visita. A bagunça foi geral. Os punks devoraram um ovo de páscoa gigante e dormiram espalhados pelo chão.

NaPalm, fim da Inocentes...
“Eu acho o Clemente um cara super divertido. Ele está sempre de bom humor. É difícil você ver o cara ranzinza, bravo. Essa é uma qualidade que todo mundo admira.” (Marco Badin, proprietário do Hangar 110)

Em São Paulo, em 1984, com as casas já não querendo colocar bandas punks para tocar, o negócio foi arrumar um emprego. João Gordo esclarece o que acontecia: “Naquela época, não tinha muito show. Nos shows de punk a polícia ia e parava tudo. A gente não tinha som, não tinha aparelhagem, não tinha porra nenhuma. Quando tinha não acabava o show. Começava e não acabava”.
Uma das primeiras casas alternativas da cidade de São Paulo que cedeu espaço para as bandas de punk foi a NaPalm. Na casa, trabalhou Clemente, João Gordo, Calegari e Meire. Clemente trabalhava no bar. O show de inauguração foi da Inocentes. A casa cobrava a entrada, e os punks ficaram irritados por terem de pagar. Achavam que a NaPalm era casa de burguês, e quem trabalhava lá era traidor do movimento. Começaram a pegar no pé da banda. Discussões internas também voltaram a acontecer no grupo. A falta de shows, a pressão que os punks faziam e os problemas internos provocaram uma discussão no camarim minutos antes de subirem no palco. Decidiram terminar a banda.
Na hora da decisão estava Clemente, Calegari e Marcelino: os três fundadores já não aguentavam mais a pressão que o movimento punk fazia. As brigas entre as gangues deixavam a situação insuportável e, para completar, pouco antes um grande amigo do grupo havia levado cinco facadas de membros de uma gangue rival e estava internado na UTI de um hospital. O clima era pesado quando Clemente subiu no palco e anunciou; “Aí rapaziada, hoje é o último show da Inocentes, então aproveitem bem porque acabou”. Na pista estavam fãs da banda. Depois do anúncio uns choravam, outros pediam pelo amor de Deus para não parar. Até os que acusavam a banda de traidora do movimento queriam a banda na ativa. Mas não teve jeito. Foi o fim.
A Inocentes era a única banda que conseguia aglutinar o movimento punk. Onde estava, centenas de punks a acompanhava. Tinha uma relação muito próxima com o público. A banda e seus fãs iam a festas juntos, faziam viagens. Não foi só uma vez que Clemente teve que ir à delegacia buscar colegas que ficaram detidos por causa de brigas. A decisão foi um baque e tanto para os integrantes como para os punks que os acompanhavam, ou seja, boa parte do movimento.
Acostumado a suas atividades com a banda, quando se viu fora da rotina de shows e ensaios, Clemente sentiu o peso do fim. Para completar, após achar 100 gramas de maconha de João Gordo no depósito da NaPalm; o dono da casa, Ricardo Lobo, mandou Clemente, Gordo e Mingau embora. Sem emprêgo e sem banda Clemente ficou psicologicamente desestruturado e caiu na bebedeira.

Bebedeira, nova formação e Legião Urbana...
“A gente (a Replicantes) curtia a Inocentes lá no Sul. Eu tinha o primeiro disco, o Miséria e Fome. O Clemente na verdade é um agitador cultural. Ele está sempre ligado a vários projetos e sempre chamando os amigos.” (Wander Wildner, ex-Replicantes, uma das bandas mais importantes do punk gaúcho)

Depois do fim da Inocentes, Clemente foi convidado por velhos amigos do movimento punk para tocar em uma banda chamada Neuróticos. Na banda, tocavam André Parlato, Antônio “Tonhão” Parlato e Ronaldo Passos. Clemente entrou para assumir os vocais e para fazer a segunda guitarra. Nos meses que se seguiram, ele se afundou no álcool. Os amigos o evitavam. João Gordo lembra dessa fase: “O Clemente estava em uma fase de bebedeira ‘monstro’. Lembro que nessa época, ele ficou chato. Ninguém agüentava ficar perto dele porque ele estava bebendo demais.”
Em 1984, a Neuróticos resolveu mudar o estilo da banda, queriam sair daquele circuito punk. O movimento havia se dispersado, as brigas entre São Paulo e ABC tinham se agravado, e a situação para as bandas punks estava insustentável. Os grupos da primeira fase do movimento migravam para outros estilos. A Ratos de Porão foi tocar heavy metal, a Cólera se desfez, e o Redson, líder da banda, montou um grupo chamado Rosa Luxemburgo que tocava new wave. Foi uma debandada geral.
O novo quarteto do qual Clemente participava começou a fazer ensaios com uma outra proposta sonora. Surgiram músicas novas. Nessa fase Clemente escreveu as músicas “Terceiro Mundo”, “Rotina” e “Expresso Oriente”, que diz:
“Viaje conosco no Expresso Oriente. E venham conhecer as maravilhas das Arábia. Onde as crianças brincam no Front. E o melhor brinquedo são armas importadas. Vejam esse exemplo de fé e devoção. Soldados do Irã e do Iraque marchando direto pro caixão. Conheça de perto as lindas ruínas do Líbano. Bronzeie-se no Saara às margens do Rio Nilo.
Viajando no Expresso Oriente.” (Expresso Oriente)
O estilo pós-punk do grupo estava definido. O que não havia era um novo nome para a banda. Os ensaios eram freqüentados por alguns amigos que davam seus palpites. Na indecisão para criar o novo nome, um desses visitantes, ouvindo as músicas, disse:
- “Porra cara! Isso é Inocentes.”
Todos concordaram e assim a Inocentes voltou com nova formação. Passou a ser composta por Antônio “Tonhão” Parlato na bateria, André Parlato no baixo, Ronaldo Passos na guitarra, e Clemente na guitarra e nos vocais.
A partir de junho de 1984, a banda Inocentes trazia uma nova formação, o estilo passou a ser pós-punk e o circuito de shows a que pertenciam também tinha mudado; se tornaram uma banda de Rock Paulista. “A gente estava de saco cheio de tocar só para os punks. Se fôssemos tocar em alguma casa que cobrasse a entrada, éramos traidores do movimento. Fazer a camiseta da banda era ser traidor do movimento. Tinha que tocar só no gueto. Aí a gente encheu o saco”, conta Clemente, num momento de desabafo.
Um disco que demonstra bem essa mudança é o “Pânico em S.P.”, lançado pela Warner Music, em 1986. É um disco que define o novo estilo do grupo. As músicas “Não Acordem a Cidade” e “Ele Disse Não” demonstravam a tendência pós-punk da banda. “Quem ouve a Inocentes no disco ‘Grito Suburbano’ e depois no ‘Pânico em SP’ percebe claramente a mudança”, aponta Ronaldo Passos, 46, guitarrista da banda.
Estavam em uma nova fase. Passaram a fazer shows em ‘casas’ que abrigavam um público diversificado. Lugares como o Via Berlin, Ácido Plástico e Lira Paulistana. O Lira foi um berço da música independente em São Paulo na década de 80. Virou o abrigo dos Inocentes.
No Lira, Clemente fez amigos importantes para a profissionalização da banda. Conheceu Paulinho Barnabé, que em 85, quando André Parlato foi servir o exército, tocou durante um ano na Inocentes. Fez amizade com ícones da vanguarda paulistana como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola e Lord K. Passou a estudar vocalização, técnicas musicais, dinâmica, andamento e dicção. Aprendeu também a como se comportar no palco. A banda começou a crescer e a se profissionalizar.
Com a profissionalização, começaram a aparecer mais lugares para os shows. Tocavam no Rose Bombom, na Rua Oscar Freire, onde a proprietária abriu a sexta e o sábado para os shows da Inocentes. “Tinha de tudo no show da gente, de surfista à punk. Foi legal isso porque a gente começou a crescer cada vez mais”, conta Clemente.
O destaque que a Inocentes conquistou com a vanguarda paulistana rendeu o convite para abrir o show da banda Legião Urbana, no Circo Voador, Rio de Janeiro, em 1985. O Circo Voador estava lotado, com aproximadamente três mil pessoas. Havia gente até do lado de fora. Na programação, a Inocentes abriria o show para a Legião. Mas Dado Vila Lobos, guitarrista da Legião, entrou no camarim e com a desculpa de que precisava ir embora para tomar injeção de insulina pediu para tocar antes. Clemente lembra a expressão que lhe veio à cabeça naquele momento: “Fudeu, cara!” Ficaram assistindo a Legião Urbana tocar e o público inflamado cantando as canções de Renato Russo. Quando acabou o show da Legião, o pessoal da Inocentes se apressou em ligar os instrumentos na tentativa de não dar tempo do público ir embora. Sobraram por volta de duas mil pessoas para assistí-los. Tudo corria bem, o público estava embalado ao som das levadas pós-punk da banda, até que a correia que sustentava a guitarra do Clemente estourou deixando-o na mão na hora ‘H’. O roadie (auxiliar de palco das bandas), sem saber o que fazer, corria em busca de alguém que pudesse ter uma correia sobrando para emprestar. Foi quando Dado subiu no palco com sua guitarra na mão e a emprestou para Clemente terminar o show. “A Legião Urbana que disse que ia embora cedo ficou para não perder a apresentação dos veteranos de Sampa”, relembra Ronaldo. E acabaram salvando o espetáculo. E o melhor da festa para Clemente foi o cachê que receberam, o maior pago até então. O Circo Voador pagava para os músicos 10% do que arrecadavam com a bilheteria. Foi o suficiente para voltarem de bolso cheio para a terra da garoa.

Guerra de gangues, falta de show...
“Nós convivemos no trabalho, em reuniões: o Clemente é um cara aberto para a conversa. É inteligente e tem as idéias claras do que quer fazer. É uma pessoa versátil, tem a cabeça boa para criar músicas e sabe expor bem o que está fazendo.” (Cacá Prates, atual empresário da Inocentes)

Em São Paulo, a vida boa de músico, monetariamente falando, durou pouco. Nesse período, entre os anos de 1984 e 1985, a coisa começou a ficar difícil. Os shows ficaram escassos novamente. O produtor resolveu abandonar o barco. Ficaram sozinhos, sem alguém que divulgasse a banda. As brigas entre as gangues trazia uma repercussão negativa para o grupo. Episódios de conflitos e vandalismo aconteciam com freqüência. Um desses casos aconteceu em frente ao Madame Satã (casa noturna no Bom Retiro), mais precisamente no antigo Bar do Zé, e ilustra bem a situação:
No som do bar tocava um disco da banda punk norte americana Dead Kennedys. Estava ali um grupo de punks, que era a união entre duas gangues da região norte da cidade. Eram as gangues da Vila Carolina, berço punk onde Clemente se criou, e outra chamada Punk da Morte, da Vila Palmeiras. Após o festival “Comêço do Fim do Mundo”, as duas facções se uniram, e o resultado dessa união foi a gangue “Carolina SP da Morte”. Quinze dos principais membros dessa gangue estavam no balcão do bar do Zé naquela noite. Enquanto bebiam e conversavam, um grupo rival, com aproximadamente 40 membros da gangue Carecas do ABC, subia a rua em direção ao bar. Quando os punks da Carolina SP da Morte perceberam que a porta do bar estava repleta de brutamontes de cabeças raspadas, o tempo que tiveram para tomar a decisão de pular o balcão e buscar refúgio no banheiro do bar, foram milésimos de segundo. Os punks da Carolina SP da Morte em desvantagem, se uniram para travar a porta do banheiro, enquanto os Carecas do ABC do lado de fora forçavam a entrada. Trancados no banheiro para defender a própria vida, os punks da Carolina SP da Morte se mantiveram firmes bloqueando a porta. Do lado de fora, um membro da gangue Carecas do ABC, com um machado nas mãos, golpeou-a por uma, duas, três vezes. Em seguida, um último golpe estilhaçou a parte superior do acesso. Os punks da Carolina SP da Morte puderam ver as cabeças raspadas do pessoal ABC em confusão no corredor. Atentos, ainda ouviram a gangue dos carecas destruir o bar antes de evacuar o local. Quando saíram, a única coisa que restava intacta era o aparelho de som que fez a trilha sonora da confusão. Essa história foi contada por Ariel Uliana Jr., ex-integrante da gangue Carolina SP da Morte, que ajudou a trancar a porta do banheiro. Casos como esse deixavam os donos das casas noturnas receosos em colocar bandas punks para tocar.